25 de setembro de 2016

strudel de maçã


É certo que não conseguirei dizer aqui o que conseguiria se tivesse a disciplina de escrever frequentemente. É certo que já sei faz tempo que meu problema de vida é a disciplina. É certo que limparei esse texto das impurezas tal como faz um garimpeiro com sua bateia, separando as pequenas pedrinhas de ouro do barro.  É certo que as primeiras três páginas desse texto serão todas feitas de impurezas, para então, daí, vir a brilhar alguma coisinha pequena e concreta no fundo. Quase invisível, quase indizível. É certo que eu colocarei as lentas da Amy Winehouse pra me ajudar. É certo que logo abandonarei esse recurso sujo e estúpido da repetição do início das frases. É que ainda estou com barro nas mãos.

Eu gostaria que esse texto tivesse um sabor doce-azedo com o mesmo aroma de canela que vem do strudel de maçã que estou preparando. Saudade de caminhar de noite pela Avenida Paulista respirando tudo aquilo que será. “Respirando aquela que virei a ser”, eu costumava pesar. Talvez há algum tempo eu tenha deixado de acreditar no devir das coisas de um jeito honesto. Pelo que foi que eu substituí o devir, eu não sei. Minha salvação é que escrever é também retomar.

Estou quase encostando.  Sei que estou quase encostando naquilo que queria dizer com esse texto, muito embora eu sinta – e saiba – que não chegarei com ele onde gostaria de chegar. Mas não reclamo. Faz tempo que não pratico. Então muito provavelmente esse texto só exista no próximo. Já ficarei bem feliz se ficar um aroma de canela exalando e ocupando espaços invisíveis, indizíveis e tão reais. Não conseguimos ver, mas sabemos que há algo ali, vivendo dentro, fazendo festa em territórios desconhecidos de nós. Encontrar é isso. 

É essa tentativa incansável com as palavras para que no final, fique alguma coisa, reste alguma coisa, sobre alguma coisa. E quando dá certo, essa alguma coisa fica em nós por efeito do que foi lido e não por conta daquele conjunto de palavras registradas ali. É o efeito da combinação o que nos ocupa dentro. O substrato. Efeito é aroma. E porque existe o aroma-substrato é que o leitor diz “Que texto!”, mas não tem nada a ver com o texto. Palavras são inodoras. O indizível é que cheira. Escrever é revelar o fundo invisível das coisas. É revelar, através da palavra, o que a palavra não consegue dizer. Escreve-se pra fazer surgir o que não está escrito. Escrever é produzir aroma.
  

21 de abril de 2014

Tristão

Tristão,

Andei tentando aplacar as chamas do meu coração todos estes dias.
Cansei de tentar fazer o impossível.
Eu sou Isolda. E meu coração estará sempre em chamas. Na harmonia e na confusão.
Eu sou Isolda e não negarei o meu nome por você.
Eu te liberto.
E caso você não regresse, meu Amigo...
Eu entenderei. Porque também já fui Medéia e aprendi que é raro um homem saber lidar com um coração-em-chamas-de-mulher-intensa.
É preciso muita coragem.
Você se fez de oráculo uma vez ao telefone e me disse que eu era intensa. Eu não entendia ou não percebia isso em mim.
Mas agora eu vejo. Eu sei. Eu era. Eu sou. Sempre serei.
Me chamo Isolda.
Não haverá entre nós o desconforto das relações contemporâneas pobres e medrosas de amor.
Eu estive lá a sua espera ontem. Fui até o cais para te ver. E fui nua. Com a nudez que me cabe vestir.
Eu sei ser inteira. Algo diferente disso é não ser. Mas isso é poesia e Ricardo Reis é infinitamente melhor que eu.
...
Não sei dizer se você veio. Ou se deixou apenas seu vulto vir. Ou ainda, se ficou em sua nau, dentro do mar calmo, seguro e negro, me observando acenar em sua direção.
...
Nunca me envergonharei da minha esplêndida capacidade de amar.

Com afeto,
Isolda

1 de abril de 2014

Isolda e o Oráculo .ou. Carta de amor

Escrevo porque ontem você me fez ser Isolda e eu te chamei de Amigo nos poemas medievais de amor que te escrevi.
Mas em breve, minha consciência reativa de mulher quase independente e contemporânea me forçará a conhecer outros homens como forma ilusória de fugir  e de preencher o tempo que fico esperando por você.

E o que eu menos gosto é de ter a minha vida nas mãos de outra pessoa. Mas, por agora, o que eu consigo fazer é torcer para você vir até mim. 

É escrever uma carta que você nunca lerá.

É o que eu, Isolda, consigo fazer. Olhar para o Céu com a quase certeza de se comunicar ao Incomunicável e... Esperar por você, meu Amigo, me lembrando das suas imagens específicas enquanto o meu coração pesa e aquece.

Eu torço.

Não levarei minhas mãos na tua direção. Ficarei quieta. É o que consigo fazer por hoje. Receio de ter se instaurado essa distância contemporânea entre nós. Este hiato absurdo de mais de 24 horas. 

Quero ficar em silêncio com você, à meia luz. E quero que você, de novo e repetidamente, afaste uma mecha dos meus cabelos e segure o meu rosto. E, por conseqüência involuntária, faça meu peito pesar e aquecer. 
Então eu ouvirei um som agudíssimo surgir dentro de mim. Como fazem aqueles bules antigos avisando que o café está pronto.

E se não for você o enviado que surgiu no meu Oráculo? E se não for eu a correspondente que surgiu na sua carta de Tarô? O que faremos nas derradeiras 21 horas, Amigo?
Se assim for, terei o ímpeto cada vez mais forte de embarcar numa nau e regressar aos meus no continente antiqüíssimo.

Mas por hora, eu fico aqui e finjo que consigo distrair minha ansiedade te escrevendo ou arrumando meu guarda-roupa. Mas enquanto que... Internamente... Eu só penso em Saturno, em Urano, em Netuno... E na sua voz... Amigo... E nas suas mãos. E nos seus pêlos...

Eu torço pela palavra Saudade pronunciada da tua boca.

Com afeto,
Isolda.

9 de novembro de 2013

Trindade

Hoje eu vou sentar aqui e não vou levantar até que alguma coisa nasça.

Eu decretei e porque eu decretei, será.
'No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus. (...) E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória... '

Escrever não é se esconder.
Escrever é a libertação.
Gastarei todo o grafite.
E os calos aparecerão, se preciso for. Se preciso, dor.
Porque se apaixonar também é necessário. E é preciso seguir no fio de Ariadne. Porque aprendemos  a viver no desperdício de nós mesmos, sendo comedidos. Em tudo. Em todos.
Agora, os minutos são vampiros. E será que ainda levantaremos nossos braços, corajosos, hasteando coroas de alho? Ou ofereceremos nossa jugular para o Tempo e berraremos de dor como ovelhas lacanianas cheias de falta?
O que é que se vive, realmente, afinal? Há tanto Tudo no mundo! Que alegria grandiosa e escura, a abundância!

E eu tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil...
Eu, tantas vezes camelo, ovelha.
Tantas vezes escondida atrás da pilha de processos jurídicos, tutelas, requerimentos dessas migalhas que nos acostumamos a chamar de 'existência'.
Olhei o meu reflexo no vidro do metrô e o que eu vi?
Eu, algum dia, vim-me? Ou fui tão boa arquiteta na elaboração desta 3ª pessoa que apareceu no vidro?

O tempo nos estupra enquanto nos vigiamos em sermos comedidos.
Eu quero comer o tempo.
O que há atrás dessa pilha de caducados documentos jurídicos de proibições e de desautorizações que intermedeiam minha primeira superfície e o mundo?

Que se queimem todos os papéis!
Que o fogo seja infernal e queime todas as invalidações!

De agora em diante, minhas armas são o alho, o fogo e a fome.
Eis a Nova Trindade!

As minhas diferenciações, as fui perdendo pelo caminho e tornei-me esta 3ª pessoa comedida? As minhas verdades eram assassinadas por sufocamento de dúvidas, como quando se mata um bebê com travesseiros. Cruel e sorrateiramente.

Mas agora é chegada a hora do acerto de contas.
É chegada a hora da invenção do dia do juízo.


Alho, fogo, fome.

Hoje eu não levanto daqui até parir.

20 de abril de 2013

carta de amor

Rafael, me guarda nos porta-retratos que importam pra que eu não tenha medo de desaparecer dos menos importantes?
Por aqui sentirei saudade da sua sobrancelha  e dos seus pés macios. Do nariz...
...
Me desculpe aquela vez.
...
O silêncio às vezes é ruim.
No dia seguinte, só houve silêncio no dentro das coisas.
.
O que fazer se o sentido resolveu se despedir ?
Ficou nossa foto em branco e preto, uma luminária e uma borracha roxa...


Rafael M., receita pra lágrima teimosa é desenhar letra no papel. 
O resto vem.
Resto é tempo disfarçado.

11 de novembro de 2012

José

É que esse veio por mim e se alojou no fundo sem nome.

Drummond, e agora?

19 de agosto de 2012

pipa

Sabe...
Esses dias ando pensano di mais numa coisa: Por que algumas coisas que a gente deseja acontece e outras não?
...
Sabe quano ocê pensa numa coisa, trabáia pra coisa acontecê e di repente, assim, parecendo que por obra do Divino, a coisa se realiza?
Essa alegria tão simpli. Tão singela, num é? Esse momento da vida transformado em mágica.
Pessoal diz por aí que tem a ver com... física quântica, mas eu sei disso, não. Sei que desejo realizado é bom de mais se sentir.
Mas que fique bem entendido: desejo que a gente deseja pra nóis memo. Não desejo que a gente deseja pra outro, não. Por exemplo: num dianta desejá vivência pra quem tá morto, não é mesmo?
E o desejo pode tê vários nomes, viu?! É vontade, é querer, é sonho, é saudade do futuro...
Mas tem também aquelas situações de grande tristeza quano a gente deseja, se esforça e o desejo...necas.
Aquele buraco que se abre no peito da gente, do nada, que parece que nunca vai sê preenchido por nadinha no mundo. Uma ausência crua.
...
Bom...
Mai a questão é: Por que o desejo às vez sim e outras vez não?
Qual é a diferença?
Ora! E num me venha com cunversa de "a vida é assim memo" que eu sou boba, não, viu?!
...
Eu tenho pra mim que a diferença mesmo tá é no jeito de desejá.
Quano a gente ultrapassa os limites do desejo é como se a gente estrangulasse ele, como se não deixasse o desejo respirá. Compreende?
Quem estrangula desejo é medo, é preocupação. Uma veiz eu li: "Preocupação é usá a imaginação pra criá algo que a gente não deseja."
Espia só que coisa maluca, gente! Inventá pra nóis uma coisa que nóis mesmo num qué! Eita! 
Desejo estrangulado é que nem purpurina.
É bonito di mais, porque é desejo, mas são pedacinhos quebrados, desunidos e que gruda na gente. É coisa difícil de se desvencilhá. E quano ocê acha que conseguiu, descobre aquele pontinho brilhando solitário.
Às veiz irrita.
Desejo estrangulado chega até a fazer mal, viu?! Ói só: em mim, por exemplo, desejo estrangulado fatalmente vira dor-de-cabeça. "Chaqueca!", disse um dotô.
...
O mais certo é a gente desejá daquele ôtro jeito. Daquele jeito que faz o desejo realizar-se a si mesmo.
Quano se deseja assim, o desejo é livre. Tão livre que às vezes nóis tem a impressão que nem tá desejano! Ou que o desejo nem é tão importante. Mas é aí que o danadinho acontece! E bem acontecido, viu?! Do jeitinho mesmo que a gente imaginô! Ou quase.
A liberdade é o alimento do desejo. O ar.
Quato mais eu for livre no desejo de uma coisa, mais livre é o caminho dessa coisa até mim. Porque há o caminho.
Desejo livre é que nem pipa.
Precisa é de vento e muito céu.
Desejo livre é assim. É um sem medo do fim. É um sem medo sem fim.
...
Mas, viu?!
Existe também o momento do milagre: Quano cansamo de estrangulá nosso desejo, pobrezinho, já sem ar nenhum. Quano nem a gente mesmo tem mais força e gloriosamente desistimo.
Desistir é da maior virtude.
É ser, ocê memo, a própria magia.
Às veiz, desistir é o caminho da libertação.
Desistir:
Soltá a linha pra pipa avoá.